terça-feira, 30 de julho de 2019

A relação entre Maquiavel e a obra "O Senhor das Moscas".


“O ser humano é capaz de tudo pelo poder”.  Às vezes, essa máxima da qual tanto ouvimos no senso comum, passa desatenta de um olhar mais profundo até que iniciamos a leitura de um livro que trata essencialmente de poder, de sobrevivência e também traz questões intrínsecas da natureza humana. William Golding, em seu clássico “O Senhor das Moscas”, traz questões tão valiosas e tão profundas, que ao final da leitura da obra, provavelmente o leitor ficará por dias refletindo sobre a narrativa de garotos perdidos numa ilha.
A narrativa se inicia logo após um acidente que deixa como sobreviventes apenas crianças – meninos- e eles percebendo que estão sozinhos numa ilha deserta e sem companhia de adultos. O garoto conhecido como Porquinho – apelido esse que o deixava extremante irritado - conversando com outro garoto, Ralph, sobre a possibilidade de haver ali algum adulto que os pudesse conduzir de volta para casa. Eles permanecem alguns instantes ali brincando e conversando sobre suas vidas e percebemos que Porquinho, o garoto gordo, era de uma saúde frágil, mas bem maduro para sua idade. Ele conhecia a necessidade de haver algum líder para gerar segurança nos demais meninos sobreviventes da ilha para que pudesse existir alguma chance de sobrevivência naquele local desconhecido, selvagem, sem regras ou conforto. Ele era bem inseguro, mas logo percebeu a necessidade de ordem que havia para que as coisas funcionassem, então viu uma concha enorme na praia e pensou que seria plausível que quem tivesse em posse da concha poderia falar.
Após tocarem a concha foram aparecendo um a um e com o passar dos minutos, os sobreviventes iam se ajuntando. Porquinho lhes ia perguntando os nomes, um a um, e o narrador vai descrevendo as suas personalidades e começamos a perceber o que viria por aí. Eles chegam ao consenso de que precisavam de um chefe e logo Jack achou que quem deveria ser o líder era ele já que era o líder do coro, mas Roger achou que isso deveria ser votado e acabaram se decidindo por Ralph. A obra aponta que:
“Jack começou a protestar, mas o clamor foi mudando, e de pedido de uma eleição transformou-se na aclamação de Ralph. Nenhum dos garotos podia ter muitos motivos para isso; toda a inteligência quem tinha demonstrado era Porquinho, e o líder mais óbvio era Jack. Mas Ralph tinha uma tranquilidade, ali sentado, que chamava a atenção: também era alto, e de aparência atraente; e de alguma forma bastante obscura, mas muito poderosa, havia a concha. E o menino que tinha tocado a concha, que ficou sentado na plataforma à espera deles com aquela coisa delicada equilibrada nos joelhos, só podia se destacar.” (p.23).
Logo Ralph começou a organizar os meninos para que, cada um, de acordo com suas habilidades fosse designado para um tipo de atividade. Ralph era aquilo que conhecemos como líder natural, que detém calma, que inspira os demais por sua postura na tomada de decisões frente aos desafios.
Eles foram fazendo expedições até que foram conhecendo as características da ilha na qual estavam, desabitada e havia porcos para alimentarem os garotos até a possível chegada de uma equipe de resgate para buscar os meninos. Durante essa exploração, ficaram certos que havia um bicho que foi visto no escuro e que era muito assustador, depois disso começaram as discordâncias entre Jack e Ralph. Jack, de natureza mais violenta, denominou os meninos do coro como os caçadores e então logo começou a lidera-los e pediu para que ajuntassem lenha, ele era do tipo agressivo, que se impunha à força, enquanto Ralph, líder natural, era mais ponderado e achava que tudo era uma questão de tempo para que fossem encontrados, porém ele não era dotado da inteligência madura de Porquinho, então não tinha estratégias para que o resgate viesse logo.
Os garotos então se dão conta que serão responsáveis pelo seu próprio sustento e sobrevivência na ilha e a liderança pacífica de Ralph, mas sem estratégias contundentes, vai pouco a pouco perdendo o seu espaço, e os meninos antes perdidos e quietos dão lugar a uma crescente selvageria que vai encurralando Ralph e Porquinho de tal forma, que eles se veem isolados.
Aos poucos a disputa pelo poder entre Ralph e Jack fica tão acentuada que os meninos seguidores de Jack tornam-se insensíveis, brutos, selvagens e até com instinto assassino! Se analisarmos a situação a fundo, veremos de maneira sociológica, como se comporta a natureza humana diante da necessidade de nos mantermos vivos. A princípio somos ponderados, racionais e delegamos a um líder que se apresente como sendo nosso salvador, a responsabilidade que temos com nossa própria subsistência, no entanto, ao nos depararmos com as dificuldades e a necessidade de chamarmos para nós mesmos a responsabilidade pela nossa existência, a selvageria pode muitas vezes tomar conta de nossos atos, remontando- nos aos arquivos do nosso cérebro reptiliano, ou seja, o nosso cérebro primitivo do qual provêm os instintos de sobrevivência e reprodução, ou ainda poderíamos chama-lo de inconsciente que detém as experiências boas ou ruins que vez ou outra aparecem em nossas ações.
Os sobreviventes começam a apresentar características violentas e se insurgem contra o líder Ralph, destituindo- o paulatinamente do seu posto, e passam a agir descontrolados e sem rumo, chegam a cometer tantas atrocidades que nós como leitores ficamos, sem dúvidas, chocados.


A obra está cheia de alegorias interessantes, porque se trata de crianças e pré-adolescentes, cuja imagem no pensamento popular, geralmente remonta à inocência e incapacidade de maquinar o mal para o semelhante, talvez, seja esse um dos fatos que mais nos incomodam nessa leitura. Daí fica a questão também a ser ponderada: o meio influencia o ser humano, ou o ser humano influencia o meio? Pensamos que ambos de certa forma se influenciam, uma vez que circundados pela natureza selvagem, tornaram-se selvagens, mas também modificaram o meio; fizeram fogueiras, mataram porcos, agiram numa hierarquia que remonta aos tempos em que o homem andava em bandos e caçava. A disputa pela liderança chegou a causar tamanha transformação nas personagens da obra, que Jack, começa a achar que a saída para tudo seria a eliminação dos obstáculos, algo que, também faz alegoria com a teoria de um escritor, que sem maiores pretensões, deixou uma marca indelével na literatura e pensamento mundial: Nicolau Maquiavel.
Maquiavel, um famoso escritor florentino do Renascimento, ficou mais conhecido por sua obra “O Príncipe” que embasou muito do pensamento da Idade Moderna acerca da visão política que tinha do Estado e forma de governo, e ele toca muito no ponto de que descreve as coisas como são e não como deveriam ser. Ele escreve a obra dirigida a Lourenço de Médici, príncipe de Florença naqueles dias tão turbulentos na qual a Itália se encontrava. Havia vários principados, reinos, até República havia naquele momento. Existiam muitas famílias poderosas na Itália como, por exemplo, os próprios Médici, família extremamente rica e influente, incluindo o próprio Lourenço, como por exemplo, os Sforza, os Orsini, os Borgia, entre outras, esse clima de tensão que existia entre os ducados e as guerras e embates eram sempre constantes pela manutenção e conquista de territórios. Analisando essa situação, Maquiavel descreveu como um príncipe deveria agir para se manter no poder e para oferecer segurança a quem estivesse sob seus domínios, a ideia principal de seus escritos é a de que vale tudo para se manter no poder e aumentar os domínios. Ele descreve em “O Príncipe”:
“Digo, consequentemente, que estes Estados conquistados e anexados a um Estado antigo, ou são da mesma província e da mesma língua, ou não o são: quando o sejam, é sumamente fácil mantê-los sujeitos, máxime quando não estejam habituados a viver em liberdade, e para dominá-los seguramente será bastante ter – se extinguido a extirpe do príncipe que os governava, porque nas outras coisas, conservando – se suas velhas condições e não existindo alteração de costumes, os homens passam a viver tranquilamente, como se viu ter ocorrido com a Borgonha, a Bretanha, a Gasconha e a Normandia que por tanto tempo estiveram com a França, isto a despeito da relativa diversidade de línguas, mas graças à semelhança de costumes facilmente se acomodaram entre eles.” (O príncipe, p.15).
Maquiavélico é um termo que é utilizado para se referir aos ensinamentos de Maquiavel, mas acaba deturpando o verdadeiro teor de Maquiavel, porque na maioria dos casos em que é utilizado, tem cunho extremamente negativo, como se denotasse alguém extremamente sedento por poder e que não mede esforços até obter o objeto de seus anseios. De certa forma, todo líder precisa estar pronto a fazer alguns esforços para se manter no poder. Não entraremos aqui no quesito ético, mas funcional e pragmático da estrutura do poder absolutista. Naquele período de efervescência tanto cultural, ideológica, quanto de disputas por territórios, era natural que Maquiavel desse uma instrução a Lourenço de Médici que o ajudasse a se consolidar como príncipe dos seus domínios e o orienta como é visto na passagem acima, para ser respeitado e temido em novas conquistas territoriais. Assim conseguimos traçar um paralelo entre o pensamento maquiavélico de poder e o que ocorre na leitura de “O Senhor das Moscas” visto que, Ralph por mais que tivesse a princípio a simpatia dos demais garotos, não soube no decorrer do tempo se sustentar, porque vinha com uma promessa de resgate que parecia, com o passar dos dias, algo distante da realidade; enquanto Jack lhes oferecia uma situação de sobrevivência mais palpável: carne de porco para a alimentação do grupo, participações de rituais e danças frente a fogueira e por isso a sensação de pertencimento a um grupo, ou seja, oferecia possibilidades reais de uma sobrevivência possível, enquanto Ralph lhes oferecia uma probabilidade que talvez nunca pudesse ser concretizada, fato esse que foi fazendo com que ele ficasse dia após dia mais isolado e Jack mostrava aos “caçadores” como denominou seu grupo o quanto Ralph não poderia ser respeitado, o que nos mostra que o autor, com certeza, tinha conhecimento das ideias maquiavélicas da Idade Moderna. O livro diz:
“Jack se virou para os caçadores.
Ele não é caçador. Se dependesse dele, a gente nunca ia ter carne. Nunca foi monitor de turma, e a gente não sabe nada sobre ele. Só fica dando ordens, e a gente tem de obedecer a troco de nada. E toda essa conversa”(p.140).
Também podemos analisar a obra de Golding com o pensamento do filósofo Thomas Hobbes, que entendia que todo Estado precisa de uma liderança forte para subsistir, ele acreditava que em todo estado natural de existência, havia homens mais fortes e mais inteligentes uns que os outros, mas que existia a necessidade de os homens de determinada sociedade abrirem mão de um pouco de sua liberdade para que pudessem ser governados por um líder mais forte que os conduzisse por meio de sua inteligência e força para o bem comum, a esse conceito ele denominou “Contrato Social”; isto é, embora haja a competição natural de um homem para com o outro, no fundo, todos gostariam de viver num ambiente de paz, segurança, que lhes poderia ser assegurado por meio de seu líder, que seria uma autoridade inquestionável, que é o caso de Jack, os garotos sequer questionavam suas ordens, mas continuavam a segui-lo, visto que acreditavam estarem protegidos da fome e as demais intempéries da vida selvagem.
Podemos perceber também na leitura do texto, que não existe personagem feminino, além da porca, e ela é brutalmente assassinada pelos garotos que se autodenominavam “caçadores”, não percebendo eles que matando a mãe porca, em breve morreriam de fome, pois não haveria mais porcos para que se alimentassem.
Se olharmos a data de publicação do livro “O Senhor das Moscas” que é do ano de 1954, podemos perceber outro contexto histórico que intrinsecamente percebemos na narrativa: a Segunda Guerra Mundial que tinha recém findado, e também a Guerra Fria, que teve seu início após a Segunda Guerra, se analisarmos a questão das partes envolvidas na Guerra Fria, por exemplo, era um país que se intitulava democrático que eram os Estados Unidos da América, e do outro um bloco de países com uma forma de governo mais autoritária, ambos mediam forças para ter a hegemonia política, econômica e militar do mundo, ao nos voltarmos para as personagens, percebemos esse embate entre Ralph – que seria a democracia -  e Jack – a ditadura que se instala aos poucos- e podemos ver essa narrativa como a derrota da democracia, porque na narrativa, Ralph chega ao ponto de não poder nem ao menos dialogar com os outros garotos, de tão encurralado que ele fica pelo grupo dos caçadores. Simon, um dos garotos, pode ser visto como aquele que conversa e vê o sobrenatural, talvez trazendo em uma analogia para a vida real, pudesse significar a religião, da qual muitos seguem pelo medo do sobrenatural. O texto diz que o monstro era produto da imaginação assustada dos meninos, mas eles criam que era uma criatura que os assombrava e ficava se movendo na escuridão:
“E assim aquela figura, arrastando os pés, foi deslizando montanha acima. Metro a metro, sopro a sopro, o vento a arrastava entre as flores azuis, passando por cima das pedras soltas e das rochas avermelhadas, até deixa-la estendida em meio às pedras despedaçadas do topo da montanha. Ali o vento se mostrou mais caprichoso e permitiu que os cordões do paraquedas se emaranhassem, prendendo – se às pedras; e então a figura parou sentada, com a cabeça de capacete entre os joelhos, sustentada por complicadas amarras. Toda vez que o vento soprava, os cabos se esticavam e por algum acidente dessa tração erguiam a cabeça e o peito da figura, dando a impressão de que ela contemplava o panorama do alto da montanha.” (p.106)
Os garotos estavam tão aterrorizados que ofereceram a cabeça da porca como presente a esse “monstro” que achavam que ali vivia, na intenção de agradá-lo e aplacar sua ira, e Simon era quem fazia o contato com ele a quem denominaram “Senhor das Moscas”, e ele mesmo nesse diálogo com o sobrenatural começa a chegar à conclusão de que talvez esse monstro fossem eles mesmos:
“Você sabe não é? Que eu sou parte de vocês? Bem perto, bem perto, bem perto! Que é por minha causa que nada adianta? Que as coisas são do jeito que são?” (p.158)
A morte de Porquinho por uma pedra foi algo que definitivamente acabou com todo o apoio que Ralph tivera, então as coisas chegaram a um ponto insustentável de perseguição a Ralph até que finalmente a ajuda e o resgate chegaram.
Portanto, pode – se concluir essa análise entendendo que a obra “O Senhor das Moscas” sugere várias interpretações, das mais variadas possíveis, a princípio pode parecer apenas uma narrativa de sobrevivência, mas destrinchando, fazendo a leitura do momento em que foi escrito, e submetendo -  à intertextualização de vários conteúdos que tivemos durante esse semestre, por exemplo, com a filosofia maquiavélica ou a de Hobbes do estado natural ao contrato social, assim como alguns conhecimentos ideológicos, sociológicos que as personagens nos apresentam, percebendo a riqueza de reflexões que a obra que Golding nos oferece por meio de breve leitura e fácil assimilação.


Referências Bibliográficas:


GOLDING, Willian. O Senhor das Moscas. Editora: Globo Biblioteca Folha. 2003

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Editora: Pé da Letra. 2007

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