segunda-feira, 29 de julho de 2019

O Cristianismo de Rabelais


François Rabelais foi um clérigo, escritor e também médico do Renascimento. Ficou conhecido por suas obras Pantagruel e Gargântua, que continham um humor leve, que aparentemente tinham a intenção de levar o leitor ao riso pela forma como conduziu a sua escrita. Durante muito tempo, sua obra ficou caracterizada apenas por esse tom de humor. No entanto, uma leitura mais atenta, conseguiu mostrar a verdadeira intenção do autor, como um crítico ferrenho aos excessos cometidos pela Igreja Católica durante o período medieval e que se estendia até a Idade Moderna.
Não é tão fácil perceber a crítica que Rabelais atribui ao Catolicismo, até porque ele se utiliza de figuras de linguagem que promovem o riso e numa leitura desavisada aparenta apenas mostrar histórias divertidas, com gigantes abobalhados e sem muita instrução, num tom de novela de cavalaria, como era costume do período medieval, mas estudos posteriores mostraram que ele achava alguns aspectos dogmáticos e até de tradições católicas extremamente esdrúxulas, chegando inclusive a ser tido como ateu. Ele tinha pouca vocação como padre, na verdade, ele tinha um espírito crítico, que buscava o conhecimento como forma de libertação do homem. Lucien Febvre em suas análises historiográficas sobre Rabelais descreveu:
“Rabelais nos é dito, um racionalista, um livre-pensador que, nessa qualidade, deseja evidentemente combater nos espíritos dos homens não letrados( ele escreve em francês, nunca nos esqueçamos disso) a influência perniciosa de uma religião que, há séculos, reflui das igrejas e dos mosteiros para o universo inteiro, penetra e satura os espíritos, insinua-se pelos usos em todos os atos, em todos os pensamentos dos homens.” (p.236).
Há um entendimento que aponta que François Rabelais tinha ideias reformadas, e há também o entendimento que aponta que ele até seria ateu, mas na realidade, ele, por meio de suas obras, demonstra crença em Deus, mas demonstra achar absurdas algumas crenças católicas. Lucien Febvre afirma que ele não zombava das crenças católicas, era seu estilo literário, nesse sentido, era apenas conciso ao não tratar, por exemplo, da Virgem Maria – pilar do cristianismo católico:
“ Se eu houvesse escolhido entre os textos, poderia considerar, talvez, a primeira objeção. Não escolhi. Escalonados em três anos . de vida literária, os textos reunidos apresentam um caráter de constância, de coesão, de unidade notável. Não, não se trata de reminiscências alinhadas ao acaso. Neste caso, Rabelais se teria agarrado a dados estritamente ortodoxos; não teria zombado dos peregrinos, nem teria omitido a Virgem Maria. Trata-se de um sistema. De uma religião. Reencontramos –lhe os elementos, idênticos em toda parte, tanto no Pantagruel como no Gargântua, e nos Almanaques ou na Prognosticação. Aqui e ali, ela é de um mesmo teor".(p.236)
Temos que considerar o período histórico sobre o qual estamos nos debruçando, a Idade Moderna apresentou os resquícios naturais da passagem da ideia medieval para uma tendência racionalista, que começa a desnudar o cristianismo medieval, por isso, o Renascimento, lentamente remete nos pensadores modernos a possibilidade de tudo aquilo que se aprendeu sobre Deus até o momento, de repente passar a se tornar um pouco exagerado demais, com muitas discrepâncias, principalmente para ele, frei François, que detinha conhecimento, era um homem que ansiava pelo saber. Não podemos esquecer que em 1517, Lutero, mesmo que não fosse sua primeira intenção, acabou por dividir a igreja – sua intenção era reformar pontos que não estivessem em conformidade com a Bíblia. Após essa divisão da igreja, houve alguns outros reformadores que levantaram ainda outros pontos, tendo como base textos da Bíblia e não aceitavam a tradição católica, tanto que os pilares da Reforma Protestante se basearam em: Sola Fide, Sola Gratia, Sola Scriptura, Solo Christus, Soli Deo Gloria, ou seja, somente a fé, que diz que apenas a justificação das almas acontece pela fé em Jesus Cristo, e isso independe das boas obras, como afirma o catolicismo; Sola Gratia – somente a graça que é a dispensada por Deus por intermédio do sacrifício de Cristo pelos homens, contradizendo mais uma vez a fé católica que afirma que através da caridade se pode alcançar a salvação da alma; Sola Scriptura – somente a Escritura, ou só a Bíblia, para os reformadores, a única regra de fé e prática do cristão reside nas escrituras sagradas, opondo-se à tradição católica por meio dos cânones que instituem como alguns costumes existiriam dentro da igreja, os cristãos deveriam debruçar-se para o estudo da Bíblia e aprender a viver como Jesus Cristo no trato com os demais; Solo Christus - somente Cristo, e nesse ponto, é o que mais a reforma protestante se distanciou da Igreja Católica, que possui uma infinidade de santos que devem ser homenageados e a eles prestado culto - incluindo a Virgem Maria- que segundo os reformados, é a mulher que foi escolhida por Deus para trazer Jesus ao mundo, mas não se deveria prostrar a ela e a dirigir culto, pois a salvação se dá na cruz e esse foi um ato de Cristo, talvez esse seja ainda a maior diferença existente entre cristãos reformados e os cristãos católicos; Soli Deo Gloria – Somente a Deus a Glória, crendo os reformados que somente a Deus se deve adorar, não poderia haver um panteão de santos a serem venerados, pois isso divergiria da Bíblia.
Essas tendências reformadoras revolucionaram a forma de pensar do homem da Idade Moderna, porque há muito se vinha pagando por salvação por meio de indulgências, as missas rezadas em latim dificultavam a compreensão dos ouvintes que não dominavam o idioma, e também o protestantismo ganhou adeptos em principados que tinham de se submeter à Igreja Católica, por isso, com o tempo, foi ganhando mais e mais espaço no pensamento da época, o que acabou influenciando François Rabelais. Abel Lefranc, estudioso da literatura de Rabelais, mostra que mesmo não tendo se posicionado francamente a favor da Reforma, ele tinha simpatia por essa nova vertente do Cristianismo:
“Sem ter aderido inteiramente às novas doutrinas religiosas, nessa época Rabelais procurou demonstrar por estas uma simpatia atenta e sincera que se explica muito bem pelas preocupações intelectuais no meio das quais vivia”. Plattard, por seu lado:” Por suas tendências”, observa ele, “nessa data Rabelais se aproximava dos reformadores; sobre a Sorbonne, as indulgências, a devoção aos santos, as práticas – ele estava de acordo com os primeiros reformadores franceses, dos quais Lefèvre d’Étaples exprimira as aspirações e formulara o programa”. Contentemo-nos com essas duas citações: com pouca diferença, as opiniões concordam..” (p.241)
Percebemos que Rabelais ao ter que lidar com essa questão das indulgências e da questão de o Papa ter todo o controle da cristandade, começou a tomar partido por meio de títulos zombadores: “Apologia de Marforio contra os que dizem que a mula do papa não come senão em suas horas”, por exemplo, dotado de um sarcasmo veraz, ele se posiciona contra o catolicismo. Assim explica o texto: “a atividade dos homens preocupados com os problemas religiosos e as modalidades de uma renovação, reconhecida por todos como indispensável, oscila entre dois pólos. Ela vai e vem de Lutero a Erasmo.” (p.267)
François Rabelais colocou Cristo no centro da vida religiosa e colocou os itens que a reforma desconsiderou em segundo plano, conforme nos mostra o texto:
“Entre esse Deus e o homem, nada de inúteis mediações: a Virgem e os santos, recolocados em seu lugar, não desempenham mais que um papel secundário e distante.”(p.273).
A literatura rabelaisiana convida o leitor a pensar, por meio da característica sarcástica e humorística que ele utiliza, que as coisas não são como se estavam acostumadas a ser pensadas e sentidas. O problema da Incredulidade no Século XVI: a religião de Rabelais é uma obra que reflete que, na realidade, Rabelais era um cristão que amava o evangelho, mas estava cansado dos excessos da Igreja medieval que vinha se estendendo até os seus dias. A linguagem cômica utilizada pelo autor faz com que aqueles que a apreciam saiam da realidade e passem a questionar as crenças, os métodos e dogmas católicos. Rabelais, como um clérigo que passou por várias ordens monásticas e por isso, viu na reforma protestante, uma forma diferente e igualitária das pessoas a Deus, sem a necessidade de muitos mediadores, ele colocou por meio dos gigantes Gargântua e Pantagruel, uma visão de que as pessoas poderiam ser mais livres, e a única autoridade na religião deveria ser a de Deus e não de outros homens para auxiliar na aproximação do homem com Deus, como acontece no catolicismo romano, e como acontecia em seus dias. Rabelais, como um homem do seu tempo, refletia tanto o humanismo crescente no Renascimento, quanto a necessidade de uma fé que o homem possuía, mas almejava transformação.
O Renascimento trazia em si a sede de conhecimento, o conhecimento que transforma o homem por meio de estudos de Filosofia, Medicina, Literatura Clássica, entre outros campos do saber. O homem saía nesse momento de sua devoção puramente Teocêntrica e eclesiástica, para se dedicar ao conhecimento.
Nesse momento histórico, a Igreja começou a perder um pouco de sua força no pensamento humano, que passou a se dedicar a buscar o conhecimento de sua própria natureza. Nesse contexto, Rabelais, desenvolvia suas críticas, um pouco mais suaves que as de Erasmo - este trazia a formação do mundo que é trazida pelo livro de Gênesis, como um livro fantasioso – Rabelais trouxe suas críticas de maneira menos agressivas que Erasmo, mas não menos factuais em sua obra. Cita Febvre que:
“Mas leiamos Erasmo. E observemos em primeiro lugar que, se Rabelais limita-se a não falar da Virgem sem jamais criticar direta e abertamente o culto tradicional que lhe era prestado – Erasmo, infinitamente mais audacioso, não tem o cuidado de observar a mesma reserva.Os títulos de honra da Virgem? Ele os contesta sem nenhuma deferência. Mãe de Deus? Não. Mãe de Jesus, simplesmente.”(P.276).
Em sua obra Gargântua, Rabelais convida o leitor a pensar sobre a educação teológica, por meio do conhecimento, que é um dos pilares defendidos pelo Renascimento, porque Gargântua é ensinado pelos teólogos sorbonistas, e assim sua vida se resumia a basicamente frequentar as missas e acabou se tornando um tolo e simplório, mas que ao conhecer alguém ensinado segundo os humanistas, chora desesperadamente. Essas colocações parafraseadas, demonstram que quando o homem tem contato com o conhecimento ele é inevitavelmente iluminado pela razão. Na narrativa, Gargântua passa a se tornar culto e eloquente como o rapaz que o ensinou nos moldes humanistas.
Portanto, François Rabelais trouxe ao mundo através de sua literatura uma crítica que leva à reflexão, primeiro pelo tempo em que é escrito - a Idade Moderna, segundo porque ele traz de uma maneira muito leve e em uma linguagem simples a mensagem de contestação ao poder vigente da época: a Igreja Católica. Com a linguagem irônica e até em tom de zombaria, os personagens rabelaisianos foram construídos. Claramente influenciado pela Reforma Protestante, suas obras continham esse teor confrontante e simbólico, que demonstra que o homem poderia diretamente dirigir-se a Deus e obter conhecimento humanístico através de outros campos do saber que não somente a Igreja. Assim, sua obra reflete o homem que viveu na Idade Moderna e ansiava por mudanças estruturais na fé e na vida cotidiana enquanto pessoa.

Referências Bibliográficas:

FEBVRE, Lucien. Livro primeiro: O cristianismo de Rabelais. In: FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI – A religião de Rabelais. São Paulo: Companhia das Letras.2009. p. 217 – 288.

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