segunda-feira, 29 de julho de 2019

Os bárbaros na idade média

Queda do Império Romano

Muito se fala sobre como os bárbaros destruíram a cultura clássica e ocasionaram com as invasões ao Império Romano, seu enfraquecimento e consequente ruptura até o momento que conhecemos como Idade Média. Diz – se dos povos bárbaros, muitos dos estudiosos fascinados pela cultura greco-romana, que ocasionaram o declínio nessa cultura, mas seria justo dizer que não houve bárbaros que ajudaram a manter as tradições clássicas? Será mesmo que eles não contribuíram em absolutamente nada? Houve somente bárbaros incultos, violentos e sedentos de sangue e poder que se estabeleceram nas regiões dominadas por romanos?
Geralmente, historiadores gostavam de se referir aos bárbaros como os únicos responsáveis pela queda do Império, esquecendo muitas vezes que ele já andava enfraquecido por tantas crises internas, disputas por poder, traições, e tantos acontecimentos que, fatalmente, independentemente se houvesse ou não tantas invasões, cedo ou tarde, esse sistema acabaria por se extinguir.
Analisaremos dois fragmentos historiográficos que narram duas situações distintas nesse período em que os povos migravam de um lugar a outro para entendermos a função dos bárbaros na formação dos países que conhecemos hoje e também entender o pensamento e visão de bárbaros que possuíam cultura e conseguiram retratar momentos importantes para a nossa compreensão da História atualmente. O primeiro fragmento é “A fixação dos anglos e dos saxões na Bretanha.” e o segundo fala sobre “A queda do Império Romano do Ocidente” ambos são textos escritos por pessoas de origem bárbara e com a análise mais atenta desses fragmentos poderemos desconstruir um pouco de algumas ideias de que eles eram apenas destruidores e incultos.
Nos primeiro fragmento a ideia principal é da fixação dos anglos e saxões na Bretanha. O texto narra a batalha entre saxões e bretões, na qual aqueles obtiveram a vitória sobre os bretões. Com isso, enviaram notícias da fertilidade da terra e a postura inerte dos bretões. Assim, foram enviados ainda mais saxões e armas, formando um exército quase invencível, por conta disso, os bretões lhes deram por doação para habitarem entre eles em paz, desde que lutasse contra adversários pela paz e salvação da Bretanha. O fragmento ainda conta, que mesmo assim, chegaram outros povos germânicos como os anglos e jutos, além dos próprios saxões. E esse texto é narrado por Beda, o Venerável, ou Venerável Beda, que era um monge anglo- saxão de Monkwearmounth  - Jarrow, no norte da Inglaterra, entre o fim do século VII e VIII. O fragmento possui uma característica de crônica historiográfica, pois dá a noção exata do tempo em que sucedem os acontecimentos: “No ano 449º da Encarnação do Senhor, tendo Marciano com Valentiniano obtido o reino, o 46 º a partir de Augusto, deteve-se por sete anos.” O texto está traduzido em formato de prosa e pode ter sido escrito tanto em anglo – saxão ou em latim, já que Beda era versado em latim e traduziu algumas obras do latim para o anglo – saxão, ajudando assim a expandir em sua época, o cristianismo inglês. O que se pode inferir por meio da leitura do texto é que Beda era um monge intelectual, apesar de não ser de origem romana, era versado em latim, e tinha profundo conhecimento da formação histórica de seu povo durante o desenrolar da Idade Antiga para a Idade Média. Esse fragmento foi produzido entre o século VII e o início do século VIII, que foi o seu período de vida. Por conta desse fato, podemos saber que ele escreveu o fragmento historiográfico posterior aos acontecimentos. Parece que o objetivo ao escrever esse texto era agregar às futuras gerações um pouco de conhecimento sobre suas origens e seu passado, sobre a formação do povo inglês. Ele gostava de escrever e possuía vasta cultura, então ao longo de sua vida ele escreveu muitas obras, tanto sobre fatos históricos, como científicos e também teológicos, tornando-se importante e estudado por muitos até os dias de hoje.

São Beda, o Venerável

 Segundo o texto” o milagre régio apresenta-se sobretudo como a expressão de certo conceito de poder político supremo”. (p. 68)
A importância de se ter um soberano era que ele também era identificado como sagrado e essa identificação era comum a uma parte da Europa, especificamente à França e Inglaterra, que será objeto de estudo na obra de Marc Bloch.
Do ponto de vista religioso, o texto registra que na França e Inglaterra os reis conseguiram se tornar médicos milagrosos aos olhos do povo, porque eram vistos como enviados e ungidos de Deus, e portanto, detinham poder para curar doentes. O texto cita que Pierre de Blois disse: “ sanctus enim et christus Domini est”. (o rei é santo, é o ungido do Senhor), e se referia ao seu soberano Henrique  II, seu monarca. Assim, conseguimos entender que o homem medieval via na figura régia alguém santificado por Deus, e como nesse contexto, não podemos dissociar o religioso do político, quem fosse contrário ao seu rei, também era alguém que era visto como um sacrilégio e por assim dizer, as suas decisões eram permeadas por religiosidade.
De que forma o passado bíblico e da Antiguidade Clássica se faziam presente no medievo e qual sua importância?
O texto mostra que os povos que se originaram de invasões mantinham ao redor da realeza uma atmosfera quase religiosa de veneração e foi na Bíblia que encontraram um modelo que concedeu uma união entre o cristianismo e realeza sagrada nas idades antigas. O texto cita o capítulo 14 de Gênesis que fala sobre Abrão recebendo pão e vinho das mãos de Melquisedeque, rei de Salém e sacerdote do Deus Altíssimo. E o Antigo Testamento não era só uma fonte de simbolismos, mas apresentava um modelo de uma concreta instituição. O caráter sobrenatural era marcado pela unção. Quando o soberano ascendia ao trono, algumas partes do seu corpo eram ungidas com óleo previamente santificado.
Essa unção se concretizou primeiro na Espanha após o desaparecimento do arianismo e a Igreja e a dinastia viviam uma união íntima no século VII. Depois veio a França com Pepino, filho de Carlos Martelo, em  751, e foi o primeiro a receber a unção de sacerdotes.
Unção Régia:
Espanha(séc. VII)______Pepino, na França em 751 -------------Fim do séc. VIII, na Inglaterra. 
Ao mesmo tempo em 25 de dezembro de 800 na basílica de São Pedro, o Papa Leão III colocou uma coroa em Carlos Magno e o proclamou Imperador. Os reis haviam se tornado assim “ungidos do Senhor”.

Carlos Magno

Qual ou quais as relações convergentes e divergentes entre a figura do rei e a Igreja?
As relações convergentes são aquelas em que os soberanos monarcas haviam se tornado como “ungidos” de Deus, posto que recebiam semelhante unção a de um sacerdote.
Mas na consagração, o sacerdote era superior ao rei, já que um rei dependia da consagração eclesiástica, já o sacerdote não era ungido por reis, mas por integrantes da própria Igreja. Tanto que esse pensamento levou o rei Henrique I da Alemanha a ser o único do seu tempoa recusar a unção e a coroa que o arcebispo de Meinz lhe propôs e sem a benção de um pontífice. A  discussão acerca da unção de reis foi ficando cada vez mais acentuada entre os membros do clero. Conforme cita o texto:”... certos espíritos penetrantes depreenderam bastante bem os perigos com o que semelhante confusão entre uma dignidade essencialmente temporal e o sacerdócio podia ameaçar a Igreja e até o cristianismo.(p.79)”No século XI, todo um partido dedicou-se a comparar a dignidade régia ao sacerdócio”. Essa unção e a procura de pessoas que buiscavam no rei cura para suas enfermidades, mais comumente as escrófulas, uma espécie de inchaço nos gânglios, foi chegando a causar mal estar por parte de alguns sacerdotes, porque as pessoas, muitas vezes,  preferiam ir até o rei do que buscar a unção de um sacerdote, daí começou a  existir uma corrente que viu na unção da realeza, uma instituição que ameaçava a influência da Igreja sobre as pessoas.
Considerações gerais sobre a importância do rei no Ocidente Medieval:
Portanto, a figura régia detinha um conceito sacro para o homem medieval no Ocidente, mais especificamente aqui estudados por França e Inglaterra, assim o rei foi ganhando um conceito de santo como os pontífices. Tanto que ganharam uma unção semelhante a de um sacerdote. A população passava a vê-lo como capaz de realizar milagres. Alguns reis tocavam doentes e acreditava-se no poder de cura , e por conta disso, o rei foi ganhando papel fundamental para um país, pois era visto como sagrado e ungido de Deus até pela influência que havia na Bíblia em relação à unção de um rei. E então, ele ganhou um papel não só miraculoso, mas sagrado no Ocidente Medieval.
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Passaremos a análise do fragmento “A queda do Império Romano do Ocidente” que trata sobre a decadência da influência romana no ocidente e conta que quando Orestes, comandante do exército estava indo a Ravena, foi para nomear seu filho Augustulo imperador, porém foi derrotado e morto e seu filho condenado a ser exilado no Castelo Luculano, ele afirma que então o Império padeceu no Ocidente: “Assim, o Império do Ocidente do povo romano, que o primeiro dos augustos, Otaviano Augusto, tinha começado a dirigir no ano de 709 da fundação da cidade de Roma, pereceu com este Augustulo no ano de quinhentos e vinte e dois do reinado dos seus antecessores imperadores”.
O que se pode perceber desse fragmento é que foi escrito por um profundo conhecedor da história romana, e de fato Jordanes foi um funcionário e historiador do Império romano oriental, mas era de origem gótica. O que pode mais uma vez refutar a tese de que os bárbaros eram todos iletrados.  Isso é algo que Ralph Mathisen procura refutar: “Não, eu proponho discutir como os verdadeiros bárbaros que foram supostamente responsáveis pela queda do Império Romano de fato ajudaram a preservar a cultura literária clássica tradicional” (MATHISEN, p. 7)
Jordanes foi um dos bárbaros que ocuparam um papel de importância no Império de Roma Oriental, pois além de possuir muito conhecimento sobre Roma, também conhecia como era a cultura gótica, tanto que sua obra “Gética” foi a única que se sabe notadamente, que é o único registro da época sobre os godos. Ele se envolveu num conflito que na época estava dividindo a cristandade medieval: a questão da Trindade. Naquele momento, havia uma corrente que a negava, e outra – a que ele seguia- que era a de defendê-la. Tal conflito deu origem a algumas obras no período em que foi detido, Jordanes produziu um importante legado para a humanidade: Romana, obra que fala sobre Roma.
O fragmento foi escrito em prosa e até onde se sabe Jordanes era fluente em latim, então podemos inferir que no texto original, o fragmento foi escrito em latim. A Romana e a Getica descrevem fatos que não lhe são  contemporâneos, já que a queda a que ele se refere acontece por volta do século V, e ele viveu no século VI, porém como é possível observar, ele conhecia bem a história de Roma, embora godo de origem.
Sim, os romanos influenciaram todos os povos circunvizinhos, e, obviamente os povos bárbaros que viviam em meio a eles, mas os romanos também foram inevitavelmente influenciados por eles, a tal ponto em que depois de tanto tempo de contato com Roma, os bárbaros já não viam tanta diferença entre si e os romanos.
Ao que se sabe, a obra foi resultado de um pedido de um amigo, e até hoje é fonte de consulta historiográfica, seu público é vasto, porque o que sabemos dos godos vem dele.
Podemos perceber clara alusão do que foi aprendido em aula, quando falamos sobre a migração dos godos e outros povos bárbaros e sua constante interação com os romanos que ocasionou aos poucos a fusão entre culturas, fazendo dos povos bárbaros cidadãos romanizados ao longo dos séculos.
Pode-se observar que Beda especifica a questão do tempo bem à maneira de uma crônica cristã “ No ano 449º da Encarnação do Senhor...” e dá bastante detalhes, assim como Jordanes, no entanto, este último retrata de forma mais sucinta, entretanto ambos descrevem de maneira clara os eventos aos quais se referem.
Nas palavras de Mathisen, que procura desconstruir essa ideia equivocada de que bárbaros seriam meramente destruidores da cultura clássica, ele afirma: “Tal processo de assimilação das tradições intelectuais romanas continuou conforme outros bárbaros foram absorvidos no mundo romano nos séculos subsequentes. Muitos bárbaros da Antiguidade Tardia deram testemunho da imagem de bárbaro obtuso.” (MATHISEN, p.8). E ainda: “No século VI, a transição de Roma para Europa bárbara estava completa. A participação bárbara na cultura literária clássica não era mais incomum. De fato, alguém pode sugerir que ela tornou-se a norma. Os bárbaros entusiasticamente elogiavam a minima habilidade literária que eles pudessem manifestar de maneira similar como os romanos faziam.” (MATHISEN, p. 12).
Mathisen ainda afirma que culpar os bárbaros pela descontinuidade da era clássica, é como dizer que mesmo que não houvesse invasões, o império perduraria para sempre, e sabemos que isso não é verdade e ainda que os bárbaros não podem ser responsabilizados pelo declínio da civilização romana, como geralmente se lê; ele diz que declínio depende da forma de quem mede o que seria esse declínio.
“Outro problema com o modelo catástrofe para a queda do Império Ocidental tem relação com o conceito de declínio. Proponentes do modelo bárbaros como destruidores tem argumentado que há muitos tipos de declínio durante os séculos V, VI e VII que podem responsabilizar os bárbaros. Mas esse pressuposto, obviamente, depende de como alguém define declínio.”(MATHISEN, p.4).
A realidade é que os bárbaros foram absorvendo os costumes greco-romanos, eles admiravam sua cultura, e muitos passaram a se dedicar a ela, por isso e até mesmo pelos fragmentos analisados, é visível que eles também ajudaram a manter a história clássica viva na historiografia. Até mesmo na religião, foram cristianizados, e posteriormente, criaram sua doutrina acerca da fé cristã: “As famílias reais dos godos, assim  como a dos vândalos, as dos burgúndios e as de outros povos, geralmente eram adeptas do arianismo, e essa versão heterodoxa da fé cristã passou a ser vinculada à figura do rei e do seu povo.” (GEARY, p.129)
A verdade é que sempre que lemos algum tipo de fonte, devemos analisar a veracidade contida em seu conteúdo, e precisamos confrontar com outros dados, sim, o que foi descrito nos fragmentos analisados é o que houve de acordo com historiadores contemporâneos bem conceituados como Ralph Mathisen e Patrick Geary, que descrevem inúmeros detalhes em suas obras de como os bárbaros ajudaram a manter viva a cultura clássica, já que houve um momento que nem os provincianos romanos tinham orgulho de sê-lo. Segundo Patrick Geary: 
“Dessa forma, ao mesmo tempo em que as elites provincianas cultivavam uma identidade que os vinculava a tribos gaulesas havia muito desaparecidas, a massa provinciana, sentindo-se abandonada pelo império e explorada pela aristocracia, buscava novas identidades entre invasores e federados bárbaros. Nenhum dos grupos considerava a condição de romano realmente proveitosa.” (GEARY, p. 128)
Portanto, o processo de romanização dos bárbaros se deu paulatinamente, mas foi evidente que mudou o cotidiano dos bárbaros - antes pagãos, agora cristãos - em também, “novos romanos”, já que eles agora se interessavam por conteúdos literários e tudo que fosse ligado à cultura clássica. Mas foram ficando tão fortes e ligados a Roma, que é impossível não ver os bárbaros como novos romanos, mesmo que ainda cultivassem alguns costumes de suas origens, eles se misturaram, e tudo foi se configurando ao longo dos séculos para aquilo que conhecemos hoje como Europa.

Referências bibliográficas:

"Novos Bárbaros e Novos Romanos" in: GEARY, Patrick. O Mito das Nações. São Paulo: Conrad, 2005, p. 113 - 140


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