segunda-feira, 29 de julho de 2019

As raízes da historiografia moderna na antiguidade clássica.

Esta resenha se propõe a analisar os capítulos 1 e 7 do livro “Acreditavam os gregos em seus mitos?” de Paul Veyne e capítulos 2 e 5 “ As raízes clássicas da historiografia moderna” de Arnaldo Momigliano. Embora os dois livros tratem do tema historiografia e seu desenvolvimento pelos séculos, a maneira como os autores abordam é bem distinta na linguagem, ainda que a intertextualidade entre eles seja inegável.
A questão central da obra de Paul Veyne é sugestiva até mesmo para o leitor mais desatento, já no título se pode inferir sobre qual a ideia mais abordada no livro, que seria a questão do mito e das crenças durante a antiguidade clássica. Veyne esmiúça a questão do mito e verdade utilizando-se de uma linguagem literária e até de certa maneira filosófica, porque entende que a questão da verdade não é algo tão simples de ser tratado, afinal as verdades foram mudando de acordo com o contexto histórico em que as pessoas viviam.
Veyne discorre sobre a questão da necessidade que havia para a antiga população greco-romana em termos culturais de conhecer sua história. E analisa que, na antiguidade clássica, a tradição se fazia necessária para a construção da identidade e história do povo. Ele acrescenta que Tito Lívio e Dionísio de Halicarnasso foram os historiógrafos que registraram os quatro séculos obscuros da história primitiva de Roma, que ao se apropriar da cultura grega, constrói sua historiografia bebendo da fonte historiógrafa grega. Mas como os gregos contavam sua história?  No contexto da historiografia grega, os historiadores não se preocupavam se os que os precediam estavam certos, para eles se era tradição, era verdade.
A história naquele contexto era a tradição, que era autoridade para a geração posterior e não era questionada quanto à sua veracidade, nesse período a história era constituída não de fatos, mas de tradição, que era apresentada em forma de texto e contava relatos de deuses, feitos de seus heróis e conquistas de seu povo. O que se pode entender é que a tradição daquela época era uma espécie de vulgata, porque mal se distinguia naqueles textos o que de fato aconteceu, daquilo que não poderia ter acontecido, devido ao conceito de verdade estabelecido por aquele período, e esta, como hoje sabemos, é subjetiva e mutável.
Essa característica de citar uma autoridade para confirmar aquilo que se diz num texto para que ele se torne confiável não vem dos historiadores, segundo Veyne, vem de controvérsias teológicas e práticas jurídicas, nas quais eram citadas tanto as escrituras, as Pandectas, ou peças de processo. E essas citações eruditas serviam para provar que seu texto tinha fundamento e que quem estava dizendo, não o estava fazendo de forma aleatória.
Diferentemente desse costume de se provar aquilo que se fala por meio de citações, os antigos historiadores não questionavam a veracidade de suas tradições até mesmo porque seus leitores eram outros, era um público heterogêneo: uns liam por diversão, outros eram profissionais da política ou estratégia, e outros liam com olhar mais crítico. Veyne mostra que Tucídides, importante historiador que contou e vivenciou a guerra do Peloponeso, entendia que um bom historiador deve ser imparcial e não acolher cegamente todas as tradições que recebeu, para ele era necessário verificar as informações e Veyne acrescenta que Momigliano entende que foi no Baixo Império que os historiadores mudaram sua atitude diante dos documentos.
Para que se entenda como extrair o núcleo das verdades contidas nos mitos, é necessário entender que a mitologia era um gênero literário popular, geralmente oral e muito amplo do ponto de vista quantitativo de contos que havia. Veyne considera que, para entender se os gregos realmente acreditavam em seus mitos, é preciso antes de tudo, entender que crença e a verdade foram mudando no decorrer de séculos e gerações. Os valores e as concepções coletivas se transformam, por isso, seria mais adequado entender que para aquele contexto, os deuses eram verdade para a maioria, portanto, seria mais fácil explicar a história por meio dos mitos, para ter significado coletivo. Conforme Veyne cita:
“Não existe senso do real e também não é mais necessário, muito pelo contrário, que se represente o que é antigo ou estranho como análogo ao que é atual ou familiar. O mito tinha um conteúdo que se situava numa temporalidade nobre e platônica, tão estranha à experiência individual e a seus interesses quanto o teriam sido as frases ministeriais ou as teorias esotéricas ensinadas na escola e admitidas sem hesitações. Por outro lado, o mito era uma informação adquirida sobre a fé em outrem.” P.39.
Arnaldo Momigliano em sua obra “As raízes clássicas da historiografia moderna” possui uma linguagem mais clara, mais didática. Algo que se percebe nos dois livros é que eles foram feitos para historiadores, no entanto, Momigliano tem maior facilidade em atingir a compreensão daqueles que não são da área da História, porque é bem objetivo nos apontamentos históricos, tornando-os de fácil entendimento. E o que de maneira principal se pode observar é que ele pretende delinear o conteúdo histórico da era greco-romana, como nos influenciou, quais os principais pensadores para que possamos compreender como chegamos a historiografia atual.
Momigliano inicia no capítulo 2 definindo que:
“O que me parece ser tipicamente grego é a atitude crítica em relação ao registro de acontecimentos, isto é, o desenvolvimento de métodos críticos que nos permitem distinguir entre fatos e fantasias.” (Pág. 05).
E ainda acrescenta, num trecho que claramente dialoga com Veyne:
“Mas as populações de língua grega que invadiram o que chamamos de Grécia no segundo milênio a.C. não possuíam um dom natural para a crítica histórica.” (Pág. 55).    Daí podemos inferir em conjunto com o texto de Veyne, que ao longo do tempo houve a necessidade de haver fundamento para aquilo que estava sendo contado. A esse exemplo podemos retomar Tucídides já citado por Veyne que aparece novamente na obra de Momigliano quando o assunto é questionamento sobre aquilo que se ouve ou aquilo que será contado. Ele vivenciou e contou sobre a história da Guerra do Peloponeso, e a contou em oito volumes, sempre priorizando a imparcialidade diante dos fatos, e colocou que o historiador deve sempre questionar sobre aquilo que ouve.                      Hecateu, que descreveu sobre a geografia da terra e as genealogias gregas, usou de uma extensa pesquisa que realizou na Fenícia e Egito entre outras terras orientais e já contestava que os mitos gregos eram por muitas vezes insustentáveis, como demonstra Momigliano:
 “ Em palavras que ainda não perderam sua força depois de 2500 anos, ele proclamou: ‘ Eu Hecateu direi o que acredito ser a verdade; as histórias dos gregos são muitas e são ridículas’. A nova atitude em relação à tradição é clara.” (Pág. 57).
Já Heródoto possuía uma visão mais conservadora diante das tradições. Ele pensava que era necessário preservar a lembrança, e com isso, preservar a tradição para através dela encontrar a verdade que lhe era implícita.
Com essa atitude conservadora que preservava a lembrança e tradição Heródoto foi reconhecido como o pai da história. Privilegiou muito a cidade de Atenas em suas narrativas, apesar disso ele não era tido como o mais confiável dos historiadores. Até porque ele não delineava uma linha muito clara entre o que narrava e os acontecimentos que julgava verdadeiros, criando assim, certa desconfiança em relação à veracidade de seus escritos.
Tucídides, como posterior a Heródoto e por tê-lo criticado fez uma reviravolta nos estudos históricos de seu antecessor. Tucídides ficou preso por cerca de vinte anos, não tinha muita simpatia pelos atenienses até por conta estar preso e buscava razões para a guerra que viveu. Ele era contemporâneo dos sofistas, mas ao contrário deles, seus estudos se concentravam mais no âmbito político. Para ele, a época confiável para se obter informações seria o presente, sendo assim, o historiador deveria se concentrar nele, para só então através de informações confiáveis ir até o passado. Ele tinha uma visão crítica em relação à função do historiador. Raramente Tucídides citou as fontes de seus relatos, tendo em vista que ele delimitava muito bem a ordem cronológica e espaços geográficos, implicitamente notamos que ele achava ser digno de confiança do leitor, e que, por já fornecer esses dados, não era necessário citar suas fontes. “Tucídides salvou a História de tornar-se prisioneira dos cada vez mais influentes retóricos que se preocupavam mais com as palavras do que com a verdade.”(pág. 73), afirma Momigliano.
Por outro lado Momigliano entra na questão de Tácito, sendo este reafirmador da nacionalidade alemã e criticava o domínio estrangeiro da Igreja Romana. Ele entendia que da relação entre governantes e governados cada um tinha o seu lugar. E seu discurso foi bastante elogiado e usado durante a época do absolutismo. Tácito leu as acta senatus e acta diurna, que eram registros do Senado e registros do jornal de sua época. Mas por vezes, deixou a entender que, embora os consultasse para questões mais complexas ou controversas, ele não lia exatamente todos. Há, então, detalhes que ele omitiu em sua obra por desconhecer os pormenores contidos nessas leituras que ele não havia feito. Para analisarmos Tácito e captarmos seu diferencial entre os seus contemporâneos, é preciso entender a importância da crítica. Ele foi um historiador que se utilizou de meios que possuía para construir seus experimentos na escrita. E conseguimos ver que eles são complexos. Em algumas obras ele coloca os líderes numa posição inferior e em outras os coloca no topo. Para ficar mais claro, ele foi um experimentador histórico-literário que não terminou seus feitos por completo.  Contudo, Tácito se fez importante por criticar a corrupção imperial. Ele analisou as questões de natureza humana com mais profundidade, assim se destacou perante outros de sua época.
Portanto, podemos entender que as duas obras analisadas são de grande importância para a compreensão do desenvolvimento da historiografia tal como a conhecemos hoje. Para nós profissionais da História, é vital que conheçamos alguns detalhes da forma como os primeiros historiógrafos que se tem notícia pensavam e noticiavam. Passamos pela obra de Veyne para entender que, como a verdade é algo mutável, os gregos possuíam suas verdades contidas nos seus mitos, porque para eles significado havia. Percebemos também, que os historiadores antes não questionavam as tradições, apenas as reproduziam, pela confiança que havia no que era tido como tradição e que alguns pensadores, ousaram questionar o que se ouvia e procuraram analisar melhor os fatos para só então registrá-los, como foi o caso de Tucídides, assim como Hecateu que também criticou a tradição mitológica grega.  Vimos também que Heródoto procurou preservar a tradição como lembrança, mas sinalizou que era preciso encontrar a verdade dentro dela. Apontamos também para Tácito que não só noticiou feitos de seu tempo, mas analisou de forma mais abrangente a natureza humana que tendia para a corrupção, especialmente em se tratando do império, fazendo assim, uma crítica com a finalidade de desmascarar o governo imperial vigente. Assim, podemos concluir que essas obras agregam valor no sentido de despertar para as mudanças de pensamento pelas quais as sociedades e culturas passam e acrescentam também no sentido de nos mostrar sobre as formas de análise pelas quais os registros históricos passaram e nos auxiliam a ver as fontes e conteúdos de maneira mais atenta, já que é essencial uma pesquisa aprofundada diante de assuntos que, como educadores, teremos de abordar e ensinar aos alunos a entender e respeitar a diversidade cultural de cada época, para que o pensamento crítico e reflexivo seja estimulado.

Referências:

MOMIGLIANO, Arnaldo. As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna.
Bauru: EDUSC, 2004.

VEYNE, Paul. Acreditavam os deuses em seus mitos?. Editora Brasiliense. 1984


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